sábado, 13 de junho de 2009

O Barroco e o Barroco em Vieira

Em Portugal, o Barroco abrange todo o século XVII e alcança, inclusive, toda a primeira metade do século XVIII. Contudo, sua gênese remonta ao século XVI, enraizando-se diante da crise espiritual e cultural desencadeada pelo progresso e pela decomposição de valores renascentistas. Como será visto adiante, o avanço e o desenvolvimento da ciência se contrapunha ao imobilismo senão ao retrocesso da religião.
Com efeito, a Escolástica, suma construída entre os séculos IX a XV, exigia para si a qualidade de senhora das verdades científicas e era fortalecida tanto pelo seu ensino nas universidades européias como pela contra-reforma. A violar esses dogmas religiosos, a inovação científica era representada por expoentes como Galileu Galilei, Francis Bacon e René Descartes, todos a propiciarem, ao século XVII, um método de conhecimento inovador, fundado na investigação científica e na sistematização filosófica. Como exemplo, o método de Descartes, ao impor a razão como acesso à verdade, contrariava a idéia de que a verdade possuía autoria e autoridade limitadas à Igreja.
Especificamente em relação a Portugal, a passagem do século XVI para o século XVII, marcou-o pela submissão à Coroa espanhola, assim como pela necessidade de se tornar independente a partir das Guerras da Restauração. Nesse conflito, portanto, Portugal aproximava-se mais da fé dogmática e tradicional do que da razão, da ciência ou do progresso. Além disso, em razão dessas mesmas circunstâncias históricas, Portugal isolou-se, voltando-se ainda mais ao fanatismo religioso, bem como a um nacionalismo exacerbado.
De todo modo, este contexto histórico de conflito entre a cultura renascentista e as imposições contra-reformistas, entre fé e razão, entre dogma e livre exame e entre progresso e tradição, o Barroco, como arte, apresenta-se também com a marca do contraste. Os artistas barrocos, em meio a esse conflito, expressam a angústia daí decorrente. O resultado é um estilo que vaza para o exagerado e, na literatura, evidencia-se o uso excessivo de figuras de linguagem, como, por exemplo, comparações, metáforas, hipérbatos e hipérboles, aliás, bastante presentes em Vieira.
Ainda na literatura, e melhor esclarecendo, o barroco se fundava em duas noções, quais sejam, o engenho e o conceito. O engenho era a faculdade de encontrar a semelhança nas coisas dessemelhantes. Por sua vez, o conceito é o ato de correspondência que se acha entre os objetos. Daí porque o grande número de metáforas, figura que viabilizava o encontro da semelhança em coisas dessemelhantes, bem como de oxímoros, figura que superava as antinomias, fundindo-as (fusionismo).
No mais, essa aproximação entre as dessemelhanças vazava em atividades hiperbólicas, na hipertrofia da visão e em um estilo que se voltava para o exagero, o ampliar dos sentidos e para o surpreender. A conseqüência está nas tendências do cultismo e do conceptismo, que inspirarão o barroco, tendências essas que, na prática, aparecerão no mais das vezes fundidas. Vejamos:
· características do cultismo: exuberância das formas, abuso da fantasia, de metáforas e de hipérboles, de trocadilhos e de adjetivações, apelo sensorial, aproximação com a descrição.
· características do conceptismo: valorização do conteúdo, jogo de idéias, expressão de conceitos, argumentação fundada em antíteses ou paradoxos, apelo racional, aproximação com a dissertação.

Essas características estão presentes também em Portugal, devendo sempre ser consideradas com as peculiaridades do fanatismo religioso e da exaltação patriótica, que conjugadas levaram a idéias messiânicas como a do sebastianismo, que, em Antônio Vieira, pode ser ilustrado pelo profetismo mítico.
O misticismo sebastianista serviu como mobilização para povo português em torno da reconquista da independência durante os anos de reinado da coroa espanhola, e é encontrado com tal misticismo na obra de Pe. A. Vieira. O mito do sebastianismo fala sobre a volta messiânica do Rei Dom Sebastião. Este, que desaparecera na batalha de Alcacer Quibir, teria sido um dos grandes reis de Portugal, que em seu tempo de reinado trouxe a glória ao país. Vieira pregava a fé de que renasceria um Portugal, semelhante ao tempo de Dom Sebastião. No texto do livro Palimpsestos: uma história intertextual da literatura portuguesa[1] , o autor faz um parâmetro da obra de Vieira, diz que o padre com as "façanhas de quem cria nos milagres da conversão" teria transportado o mito do sebastianismo a uma concepção católica, ou seja, assemelhando Dom Sebastião a Cristo, e dessa forma incitando a religião como forma de salvação. E mostra, por meio de sua pregação, que também com Deus, acreditando Nele e seguindo os seus ensinamentos, seria possível um novo Portugal.
A situação de decadência que o reino de Portugal vivia era concomitante com a perda de fiéis católicos, e a religião vivia a crise juntamente com a coroa. À medida que a nação se afundava em dívidas e ruía economicamente, o povo deixava de crer que a religião os salvaria. Porém, Vieira, com seu discurso a favor do renascer da fé, dizia o passado como um presente do futuro, como se o passado e o futuro fossem uma chave para o presente. Ou seja, o passado de Portugal seria algo que, no presente, estaria fadado a servir como exemplo de esperança para a civilização decadente.
O poeta samiR savoN, em seu soneto A breve idade da vida[2] , dialoga com a obra de Vieira sobre o acreditar em um futuro exemplar para Portugal. Note-se que narrar a História seria também uma chave possuída por Vieira, por ter o passado como um presente do futuro, o que consumaria, no caso, a glória de Portugal. Como dito por savoN, mesmo que Vieira lutasse contra a mordaça do Santo Ofício, tão forte era sua vontade de levar a palavra aos próximos que, caso sua missão não fosse cumprida, - "ver o dito feito" - valeria mais ter a vista do Céu com as retinas apagadas.

Ainda no que diz respeito ao Padre Antônio Vieira, a hipertrofia dos sentidos e a exploração da sensibilidade da visão não deixam de ser por ele praticadas. Assim, no Sermão da Sexagésima, chama seus ouvintes de “ouvidos de ver”, afirmando que a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos[3] e, para seu método de pregar, utilizará a figura de uma árvore, conforme será melhor explicado adiante.
Enfim, Vieira foi um autor predominantemente conceptista e um crítico do cultismo, não obstante tenha se utilizado de ingredientes cultistas a serviço do próprio conceptismo. A crítica ao cultismo tem seu ápice no Sermão da Sexagésima, no qual, tratando da arte de pregar, afirmará que a culpa pela não frutificação da palavra de Deus está também nos pregadores presos à forma e ao estilo rebuscado e de difícil compreensão; aos que não pregam com o uso da razão e dos exemplos; e aos que privilegiam a vaidade ao arrazoamento no uso da palavra. Destaque-se, para melhor compreensão, que o século XVII assistia a um progressivo desvirtuamento da finalidade da oratória sacra, cujos exercitantes se empenhavam em impressionar a platéia com malabarismos de linguagem, alusões políticas e efeitos teatrais. A estes pregadores as críticas de Vieira se dirigiram diretamente. Mas Vieira não se limitou a criticar outros modelos. No mesmo sermão, ele desenvolverá um método, verdadeira teoria retórica, que dominará a partir da segunda metade do século XVII até meados do séc. XVIII e que ficará conhecido como “método português de pregar”.
[1] SILVEIRA, Francisco Maciel. Palimpsestos: uma história intertextual da Literatura Portuguesa. 2ª ed. , São Paulo, Paulistana, 2008.
[2] Idem; ibidem; p.17
³ VIEIRA, Antônio. Sermões do Padre Vieira. Porto Alegre: L & PM, 2009, p. 31.